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O Royal Cine

Quando se tornou notícia que se achava em construção um cinema de estreia num bairro excêntrico como era o da Graça, e numa época em que as principais salas cinematográficas se encontravam tradicionalmente, situadas na chamada «Baixa» lisboeta, o facto foi tomado à conta se não de uma aventura, pelo menos de uma atrevida iniciativa de cujo êxito, naturalmente, muita gente duvidou.

 

Com efeito, a firma que para tal se constiituíra adoptaria o nome de Empresa Royal Cine, Lda., de que era, aliás, em boa verdade, único proprietário Agapito Serra Fernandes, cidadão espanhol, natural da Galiza e pessoa muito conhecida no meia da indústria de alimentação entre nós - proprietário, entre outros estabelecimentos, do então muito conhecido e agreguesado restaurante «Estrela de Ouro», na Rua da Prata, à beira da antiga Praça da Figueira - pessoa a que Lisboa ficaria devendo a contrução de um tal recinto de espectáculos.

 

Tendo como base de edificação o local ocupado por três grandes barracões(1) então existentes na Rua da Graça, n.os 98 a 108, a planta e a responsabilidade da obra foi confiada ao arquitecto Norte Júnior figura, na época, das mais prestigiosas entre a sua classe, várias vezes Prémio Valmor.

 

Solicitada a respectiva aprovação às autoridades competentes - a Inspecção-Geral dos Espectáculos - em fins de 1928, é logo nos começos do ano seguinte que as obras têm início, dificultadas, em certa medida, pela desusada espessura das paredes mestras dos referidos barracões, que tiveram, naturalmente, que ser demolidos completamente.

 

Obra de longo período de duração de trabalhos foi ela, pois só de Dezembro de 1929 é dada por concluída tendo a 20 desse mês sido solictada a respectiva vistoria oficial. Iniciativa vultuosa, na verdade, sí compreensível por quem, possuidor de assinalável capacidade financeira, desejou dotar o bairro onde habitava com um melhoramento de tomo, como passaria a ser, sem dúvida o Royal Cine.

 

A sala, muito espaçosa, agradavelmente decorada em tons claros, apresentava uma lotação de cerca de novecentos lugares, distribuídos por plateia, balcão e uma ordem de camarotes de frente (com 6 lugares cada um) e outra de lado, com 5 lugares. A plateia possuía três coxias, sendo uma central e duas laterais, excedendo o espaço entre cada fila o que até então se estaba habituado. Ao nível da plateia e dando-lhe directamente ingresso existia um amplo vestíbulo, do qual partem duas escadarias laterais que conduzem ao segundo pavimento. Nesse pavimento acha-se a vasta sala de baile e o bar.

 

O Royal Cone estabeleceu a quinta-feira como seu dia de estreia, apresentando a particularidade da realização, todas as quartas-feiras, de matinées-dançantes, por convite.

 

A orquestra privativa era dirigida pelo professor Francisco Benetó.

 

A 26 de Dezembro de 1929 teve lugar a inauguração deste novo cinema de Lisboa, de que era director-gerente Aníbal Contreiras, e a que assistiram a Imprensa e convidados da empresa, tendo sida trocadas palavras de louvor e de homenagem aos responsáveis pela nova sala. Joshua Benoliel, o grande repórter fotográfico, que representava o jornal «O Século», profere algumas palavras, referindo-se, assim, em certa altura, a Agapito Serra Fernandes: «Este homem é digno da gratidão dos portugueses porque sendo espanhol está empregando os seus grandes capitais em Portugal».

 

Um filme de qualidade marcou a estreia do Royal Cine - «O Cadáver Vivo», filme de co-produção russo-alemã, dirigido por Fedor Ozep e tendo como protagonista Pudovkine, um dos «grandes» do cinema da grande época russa que, por momentos, deixaria a direcção cinematográfica para ser o notável intérprete da principal figura do romance de que Tolstoi era o autor.

 

 

ESTREIA DO CINEMA SONORO

 

O Royal Cine encontra-se, igualmente ligado a um acontecimento do mais alto significado o qual se traduziu na introdução do fonocinema em Portugal.

 

Com efeito, a 5 de Abril de 1930, - e através duma aparelhagem «Western Electric» considerada, então, uma das marcas mais reputadas - a tela do Royal Cine reproduzia as imagens em matemático sincronismo com os sons, do filme «Sombras Brancas nos Mares do Sul», realizado por W. S. Van Dyke e tendo por intérpretes Raquel Torres e Monte Blue. Três complementos, igualmentes sonoros, completavam esse espectáculo inaugural, realizado às 16 horas dauqele dia e a que assistiu o Presidente da República e demais entidades oficiais.

 

À noite, o público de Lisboa pôde, por sua vez, ser testemunha da sensacional inovação que viria transformar totalmente o espectáculo das imagens animadas.

 

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(1) Segundo testemunhos que nos foram referidos ali teria estado localizada a cabine do antigo elevador da Calçada da Graça e, mais tarde, um depósito de munições pertencentes a uma unidade aquartelada na zona.

 

Manuel Félix Ribeiro

"OS MAIS ANTIGOS CINEMAS DE LISBOA 1896-1939" (1978)

 

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